Se eu tivesse um blog, escreveria sobre Uma Vida Pequena
And so I try to be kind to everything I see, and in everything I see, I see him.
Se o que geralmente viraliza no BookTok — nicho de livros no TikTok, para você que é millenial como eu — são os romances adolescentes ou histórias de fantasia, conhecer os números de Uma Vida Pequena se torna ainda mais espantoso.
São quase 100 milhões de views na hashtag com o nome do livro e a conta no Instagram dedicada à história tem quase 60 mil seguidores. O livro em si já vendeu 2,5 milhões de cópias — e segue crescendo.
A publicação não é nova e nem o furor ao redor dela: Hanya Yanagihara lançou essa história em 2015 e, no mesmo ano, ganhou diversos prêmios, incluindo um lugar na shortlist do Booker Prize.
O currículo é impressionante, mas eu estaria mentindo se não admitisse que o que me motivou mesmo a ler foram os vídeos de pessoas soluçando de chorar com o livro na mão. Amo drama e histórias que partem o coração, então achei que ia me apaixonar por essa também.
Comecei no dia 31 de janeiro e terminei no dia 29 de fevereiro a leitura desse calhamaço de mais de 700 páginas. Carreguei meu Kindle de um lado para outro para ler em qualquer oportunidade que tinha e, pela primeira vez em bastante tempo, li até de madrugada algumas noites. Registrei no Goodreads quando terminei e dei 4/5 estrelas como nota.
Ainda assim, não sei dizer se é um livro que eu recomendo.
Não vou dar detalhes da história nesse texto e boa parte das grandes surpresas do livro não serão reveladas aqui. Mas se você gosta de total surpresa antes de ler algo, é provável que você considere que daqui para frente tem spoilers.
Outro ponto importante: essa edição — e especialmente o livro — podem ter gatilhos sobre diferentes tipos de abuso e violência e se esse for o caso, talvez não seja uma boa ideia ler.
Uma Vida Pequena começa apresentando os 4 personagens principais dessa história: Jude, JB, Willem e Malcolm. A gente acompanha eles naquele momento pós-faculdade, já nostálgicos sobre os anos que se encerram, ansiosos com o futuro, cheios de perrengues no presente. Nova York é, por si só, também um personagem da história. Mesmo com o passar das décadas e as intensas movimentações de todos os atores dessa trama, tudo volta para essa cidade, onde as raízes do grupo foram profundamente entranhadas.
É nessa cidade que a gente conhece os personagens de uma forma muito detalhada e profunda. Essa é uma das minhas partes favoritas do livro, inclusive. Nela, a autora apresenta esses amigos como indivíduos complexos. Eles não são só adereços na vida de Jude, que em dado momento passa a ser o foco da história. Cada um tem um desenvolvimento rico. A gente tem a oportunidade de conhecer o passado de cada um deles e como isso segue reaparecendo de forma consistente e bem amarrada durante todos os anos de vida de cada um.
É gostoso — e identificável — ver Willem se questionar sobre ser ator, sobre quando é a hora de desistir de tentar fazer sucesso num ramo tão exclusivo e excludente. É bonito ver o amadurecimento do JB e acompanhar a jornada tortuosa dele como artista. Ou os dilemas de Malcolm com a carreira na arquitetura. Sobre a habilidade de cada um deles de sonhar em Nova York, esse lugar onde tudo parece possível ao mesmo tempo que inalcançável.
Aqui, só vemos de relance que Jude tem algo de diferente. Ele é brilhante e misterioso. Todos eles sabem que ele tem um problema de mobilidade, mas ninguém fala sobre isso diretamente. Ele teve episódios de dor na frente de alguns deles, mas, uma vez superados, ninguém retoma essa conversa. É um assunto que gera olhares silenciosos entre amigos, quase imperceptíveis.
Mas de repente a narrativa sofre uma ruptura e nós somos arrastados bruscamente à infância de Jude. É um acesso privilegiado às memórias dele. Afinal, até aqui, ninguém mais sabe o que aconteceu.
Do nascimento até atingir a maioridade, Jude passa por quatro diferentes e sequenciais traumas radicais: o abandono ainda bebê que resulta em anos de abuso em um mosteiro; uma primeira fuga que termina em mais anos de violência em cárcere; uma nova fase de violência em um orfanato, para onde é encaminhado pela Justiça; e, por fim, uma última fuga que termina em mais um cárcere e um acidente que o deixa fisicamente debilitado para o resto da vida.
Quanto mais Jude nos entrega sobre seu passado, mais ele definha no presente. Página após página, conforme descobrimos essa longa jornada de sofrimento extremo, acompanhamos também um novo ciclo de violência autoinfligido como forma de lidar com as sombras que o perseguem.
Como disse: vi dezenas de vídeos de pessoas chorando ao descobrir esse pesadelo que foi a infância de Jude. Mas eu não derramei uma lágrima. Não porque não seja triste, é claro. É devastador. É enfurecedor também. Mas o sentimento que tomou conta de mim nessa leitura foi uma compaixão raivosa pulsando a cada história, desejando ferozmente que aquilo que aconteceu pudesse ser superado, trabalhado, acolhido. Só que não sobra nada dele. Jude trata a própria vida adulta como um produto irreversível do passado — e assim, eu também perdi as esperanças lendo.
Ele não consegue buscar ajuda e, por isso, gradativamente acompanhamos o corpo e a mente desse homem, brilhante e compassivo, o traindo uma vez depois da outra.
Ainda mais desgastante nessa experiência de leitura é contemplar o silêncio dos homens ao redor dele. A autora recebeu um backlash horrível por dizer que, se essa história fosse protagonizada por mulheres, seria uma história chata. Mas, em partes, eu concordo.
Existe um pacto de silêncio masculino estabelecido e esse grupo, tão próximo quanto se pode ser, se recuse a falar sobre emoções de forma franca. Eles se negam a perguntar sobre o passado de Jude sob a justificativa de que isso os afastaria de vez, mas a verdade é que essa parece uma forma bastante conveniente de se manter distante de um passado que eles desconfiam que seja sombrio.
Mas Jude queria que perguntassem. Ele torceu por isso em alguns momentos. Uma parte dele ainda acreditava que, se algumas perguntas fossem feitas vezes o suficiente, talvez ele conseguisse falar. E quem sabe isso fosse bom.
Só que, frente ao sofrimento, esses homens desviam o olhar — e isso tem um preço alto na vida de cada um deles.
As mulheres ficam. Historicamente, as mulheres ficam. Nós olhamos para as feridas mais pútridas e escolhemos ficar. Olhamos de perto, limpamos, debridamos, medicamos, trocamos os curativos. Somos pacientes na dor, nós esperamos passar.
Quando eu tinha uns 6 anos, meu tio descobriu um câncer abdominal agressivo. Ele urrava de dor, agarrado às grades da cabeceira da cama, gritando com raiva para a esposa. Minha mãe passou meses no hospital com ele. Dia e noite. Em uma visita particularmente difícil durante o tratamento, ele também gritou com ela, no auge da frustração. E no dia seguinte, ela estava lá. Até o último dia, o último exame, elas ficaram. E ele ficou bem.
Mas Uma vida pequena não é esse tipo de história.
Antes da publicação do livro, o editor da Yanagihara sugeriu que ela cortasse algumas partes da história de Jude. Ela se negou, afirmando que queria mesmo testar os limites — do personagem, do trauma e dos leitores. E o livro recebeu um bocado de críticas em relação a isso, inclusive ganhando a alcunha de ser um “torture porn”.
Não sei se concordo exatamente com essa expressão, acredito que a ficção pode explorar e extrapolar os limites do que é aceitável numa história. Mas aqui em Uma Vida Pequena, em muitos momentos, eu me senti emocionalmente manipulada.
Como se esses traumas estivessem ali exclusivamente para chocar de novo e de novo, sem adicionar novas informações ao que se desenrola no futuro. Porque, honestamente, qualquer um dos 4 episódios horripilantes de violência que Jude viveu seriam suficientes para marcá-lo por toda a vida.
Talvez a maior tristeza dessa história não seja a vida pequena a que Jude teve acesso, mas a vida estreita que ele pode experienciar. Uma vida apertada, espremida, cega pelo trauma. Limitada pelo incapacitante medo de que a dor de remexer no passado fosse grande demais para valer a pena.
Mas não foi uma vida só de sofrimento para Jude. Ele amou e foi amado. Ele serviu pessoas, ele se espantou e maravilhou com arte, viagens e histórias. Ele ensinou o que sabia, riu e chorou em segurança. Quando terminei de ler, eu só desejei que, no fundo, ele tenha acreditado nisso.
You won’t understand what I mean now, but someday you will: the only trick of friendship, I think, is to find people who are better than you are—not smarter, not cooler, but kinder, and more generous, and more forgiving—and then to appreciate them for what they can teach you, and to try to listen to them when they tell you something about yourself, no matter how bad—or good—it might be, and to trust them, which is the hardest thing of all. But the best, as well.
Outros links
Todas as fotos que ilustram esse texto são da fotógrafa Vivian Maier
Minha festa de 31 anos vai ser assim
Sem mentira, eu assisti esse vídeo umas 30x já. O sotaque… *chef's kiss*
Até a próxima!
Ah, e não deixa de comentar o que você acha sobre esse tipo de literatura, se você já leu Uma Vida Pequena ou outra obra desse tipo e o que mais surgir por aí. Eu vou adorar saber. :)
eu quero ler!!! fiquei curiosa, apesar de odiar coisas que engatam sofrimento por sofrer. acho que tem uma série baseada no livro, também, tu viu?
Opinião de quem não leu o livro aqui e está se baseando apenas na sua linda e maravilhosamente escrita News: eu entendo perfeitamente o que a autora fala sobre ser uma história sem graça se fossem mulheres, mas discordo.
Com certeza seria uma história completamente diferente, talvez muito mais sobre companheirismo do que sobre solidão; sobre renascimento mais do que sobre a morte e muito menos um “torture porn” como você comentou. Consigo imaginar perfeitamente uma história cheia de descobertas, trocas, amor, lindas relações e diálogos.
Me pergunto se achar que a história seria sem graça não é alimentar a ideia de que o drama do sofrimento é o que dá valor à vida, como se quando maior o drama, mais rica a historia.
Por favor não me entendam mal, eu vejo a importância do sofrimento e aprecio um bom drama (inclusive masculino - shout out to “Manchester by the sea”), mas não acho que boas histórias são limitadas a eles.