Segue chegando bastante gente nova por aqui e eu estou muuuito animada e profundamente grata por isso! Sejam todas e todos bem vindos aqui. Já queria aproveitar para perguntar: qual dia vocês preferem receber a se eu tivesse um blog? Tenho variado os dias mais por falta de agenda fixa para escrever do que qualquer coisa, mas acho que vai ser bom para quem escreve e quem lê ter um dia fixo por aqui:
Oi, linda!
Não me considero praticante de nenhuma religião, mas desde a pandemia me aproximei bastante da filosofia budista. Em partes, porque precisava meditar e cruzei inevitavelmente com práticas guiadas por mestres da tradição. Mas principalmente porque você passou a comprar livros desse universo e, com as bibliotecas fundidas quando fomos morar juntas, fui catando algumas leituras.
Tudo que aprendi me deu um pouco de solidez em um mundo que parecia se dissolver em ritmo acelerado embaixo dos meus pés e sobre a minha cabeça, simultaneamente.
De todos os conceitos, o da interdependência me toca mais. Ou pratītyasamutpāda, em sânscrito. Nenhum conceito das tradições budistas é fácil de explicar e nenhuma explicação parece suficiente, mas para essa conversa ter um solo mais firme para florescer, deixo essa definição: interdependência fala sobre como todos os acontecimentos na vida, do campo mais microscópico ao mais astronômico, do mais extraordinário ao mais mundano, são sempre mutuamente dependentes. Ou, nas palavras de Buda:
Isto sendo, aquilo se torna;
Do surgimento disto, aquilo surge;
Isto não sendo, aquilo não se torna;
Da cessação disto, aquilo cessa.
Me pego pensando nisso com frequência. Não em palavras tão perfeitamente arranjadas como as de Buda, proferidas após dias imerso em pura contemplação. Mas busco ativamente abrir as porteiras do coração para sentir esse arrebatamento: nada existe num vácuo, nada é uma ilha, tudo está conectado por uma teia infinitamente entrelaçada de acontecimentos e referências essenciais para dar sentido àquilo que eu, você, nós experienciamos.
Acontece observando estranhos. Na última vez que a gente passou no shopping para tomar nosso sorvete favorito, você sentou primeiro em um banco de madeira no meio do corredor e eu fui te acompanhar. Comendo em silêncio, fiquei observando a movimentação na loja. Tinha uma mulher na faixa dos 40 com uma criança que devia ter uns 10 anos. O menino, vestido de roupa de futebol, ainda meio suado. Ela, com um conjunto de moletom confortável, sorvete em uma mão e chave do carro na outra.
Olhei essa cena e me peguei pensando: talvez ela seja mãe dele e, na volta do treino de futebol, passou no shopping para tomar um sorvete rapidinho. Vão voltar logo para casa, ele vai ser mandado pro chuveiro e provavelmente vai deixar aquela borracha preta dos campos de society espalhada no chão do banheiro. Então ele vai pegar o iPad para jogar Minecraft, ela vai ajeitar a casa e pedir uma pizza à noite.
Porque cada pessoa é um universo de desejos, acontecimentos, laços, rotinas e momentos extraordinários.
E às vezes essa percepção me leva para o passado. Penso, sobretudo, nas relações que tive - e foram muitas, você sabe bem do meu histórico de monogâmica em série, engatando um relacionamento no outro desde a adolescência. E aí imagino como teria sido ficar com meu primeiro namorado.
Na época, eu tinha 15 anos e ele 25. Em uma relação que tinha tudo para dar muito errado, foi um período tranquilo e respeitoso. Mas mais um tempo com ele e eu teria provavelmente perdido minha virgindade nessa relação. Talvez não tivesse pensado em sair da minha cidade, já que ele mesmo nunca saiu. Quem sabe engataria em uma graduação particular no interior e fincaria ainda mais raízes naquele lugar.
Ou então se eu tivesse ficado com o Pedro, meu namorado do terceirão. Aquele que terminou comigo vezes demais em um namoro de pouco mais de um ano. Uma dessas vezes foi na praça de alimentação do shopping ao lado da escola — e, por isso, a cena teve direito a uma plateia de pelo menos 50 pessoas da minha turma.
Mas nem se compara com a vez em que ele terminou comigo por telefone. Eu estava em uma viagem de família na serra catarinense e ele me disse que precisava focar em cuidar da saúde, porque tinha ido a uma consulta e o médico estava desconfiado de que ele tinha um tumor no cérebro. Nunca tive coragem de contar isso para ninguém, acho que nem para você, porque no fundo eu acho que era mentira e por algum motivo eu sinto vergonha disso.
Penso também na cisão profunda que minha vida sofreu depois daquele dia em que entrei bêbada no banheiro de uma festa da faculdade, segurei gentilmente aquela menina pelos ombros e dei (possivelmente) o beijo mais esquisito da minha vida.
Todas as mulheres que beijei dali para frente pareciam me apontar para diferentes portas, e embora todas fossem me levar para lugares diferentes, eram caminhos que eu estava disposta, ávida até, para conhecer. Tinha uma sensação que me fazia acreditar que algo especial, quase mágico, estava prestes a acontecer. Se eu abrisse os olhos, se me permitisse.
Então, quando a gente está tomando um drink no nosso bar preferido e abrimos aquele jogo de perguntas, eu respondo “acho que eu sempre soube” quando você me indaga com o celular na mão: “quando você percebeu que me amava?”.
De certa forma, tem mesmo uma aura de magia nesse encontro. Ao mesmo tempo, não tem absolutamente nada de especial. A gente se conheceu no trabalho e de um jeito que, para muita gente, era complicado. Mas não para mim. Talvez pela inconsequência de ter 23 anos e uma fome de viver insaciável, mas para mim era simples: se era amor, e eu sabia que era, nada ia ficar no meu caminho.
7 anos depois, mesmo nos dias mais difíceis, eu durmo em paz com a decisão de ter aberto aquela porta de peito aberto e cabeça erguida. E olho para o passado apenas como um ponto de referência para contemplar tudo que se manifesta hoje na minha vida e que está intimamente conectado com aquele beijo transtornante que a gente deu no carro.
Eu me pergunto: não fosse esse encontro, eu estaria tirando o lixo na sexta de manhã quando você viaja ou moraria em outro bairro, onde o caminhão passa nas quartas? Eu dedicaria uma hora do dia para passear com dois cachorros, ou teria 5 gatos dominando um apartamento?
Será que eu lavaria a roupa com esse sabão? Usaria esse tipo de escorredor? Trabalharia nessa área? Escreveria essa newsletter? Teria outra religião, outro partido, outro cantor mais ouvido no wrapped do Spotify, outro prato preferido, outro café da manhã, outros hobbies, amigos, xícaras, desejos, planos, lençóis?
Teria que outras fotos no widget do iPhone? Porque não importa o dia que eu pegue meu celular, sempre tem pelo menos uma foto sua lá.
Constantemente pego emprestadas palavras que outras pessoas, a partir de outras causas e condições que eu não consigo mensurar, escreveram. No seu aniversário de 31 anos, eu pedi para a nossa amiga desenhar um quadro com o monólogo de Frances Ha. Um quadro que só existiu porque uma pessoa teve a ideia de escrever essa história, e escreveu. E centenas de outras pessoas entraram em conjunto em um projeto para dar vida a essa ideia, carregando câmeras, microfones, computadores, que também foram criados por outras centenas, milhares de outras pessoas.
É um desenho em caneta nanquim, que só pode surgir no papel porque uma mulher decidiu que ia ser artista, e foi. Estudou com professoras e professores que ensinaram o que aprenderam com outras professoras e professores. Tudo isso foi necessário para que naquela época eu pudesse te dizer:
É aquela coisa, quando você está com alguém e ama ela e ela sabe disso. E ela te ama e você sabe disso... Mas é uma festa.
E vocês estão ambas conversando com outras pessoas, sorrindo e brilhando. E você olha através do espaço e capturam o olhar uma da outra. Mas… mas não porque você é possessiva, ou é exatamente sexual... mas por que... essa é a pessoa da sua vida.
E isso é engraçado e triste, mas só porque essa vida vai acabar, e este é o mundo secreto que só existe ali em público, sem ser notado, que ninguém mais sabe. É mais ou menos como dizem que existem outras dimensões em torno de nós, mas não temos a capacidade de percebê-las.
Isso, isso é o que eu quero de um relacionamento. Ou apenas da vida, eu acho.
E talvez eu esteja bagunçando um pouco as concepções aqui em prol da minha narrativa, porque muitos textos falam de interdependência para falar dos conceitos relacionais — essa coisa só é chamada de grande quando temos referência de que algo menor é pequeno, escuro só existe em relação ao claro, dia e noite, certo e errado.
Mas se o que era amor, afeto, casamento, diálogo, parceria, rotina mudou porque novos referenciais surgiram depois que eu te conheci, então não dá para chamar essa carta de uma fuga total ao tema.
O que você acha?
Agosto é o mês da visibilidade lésbica e, por mais que essa identidade transborde as relações entre duas mulheres, é também inegavelmente sobre amor. Então isso ficou na minha cabeça e virou essa carta.
Esse texto levou quase 10 dias para ser construído até chegar na sua caixa de entrada, entre ideia, pesquisa de referências, escrita, edição e curadoria de conteúdos. Se você acha que ele deixou algo novo em você, considere contribuir com um cafezinho pontual nesse pix se você estiver no celular — ou escaneando esse QR code com o app do seu banco, se estiver lendo a STB no computador.
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Outros links
Eu descobri recentemente o trabalho da Arden Eversmeyer, que criou em 1998 o projeto Old Lesbian Oral Herstory para contar mais de 800 histórias de mulheres lésbicas com mais de 70 anos. Nas palavras delas, “antes que elas se percam no tempo”. Aqui tem um mini documentário que vale a pena assistir para conhecer essas mulheres incríveis e lembrar que, apesar de tudo, a gente sobrevive;
A mesma amiga que desenhou meu quadro, também tem um trabalho fantástico de impressos independentes — em especial sobre e para mulheres lésbicas, mas definitivamente não só. Vai lá espiar a página dela para apoiar quem faz arte nesse país (e quem sabe reforçar os meus pedidos pra ela abrir uma lojinha com produtos Brustozines!);
Para quem é de Florianópolis, precisa acompanhar a programação da Lambe. É uma produtora independente que promove não só festas, mas só no mês de agosto fez: um bingo, um campeonato de sinuca, exibição de filme, exibição de documentário, bazar, brechó, exposição de arte… Sério, tem pra todos os gostos;
Qual é o papel do amor na sociedade que queremos construir? A revolucionária Alexandra Kolontai fala sobre isso nesse livro curtinho chamado A Nova Mulher e a Moral Sexual — e mais especificamente em um capítulo desse livro que chama “amor-camaradagem”. O livro em si já é uma leitura bem acessível, mas a comunicadora Debora Baldin aborda os principais conceitos nesse vídeo.
Até a próxima!
Eu acho que não dá pra chamar de fuga total do tema, não. Muita coisa mudou e muita coisa vai mudar sempre. E essa é justamente a beleza da vida. É lindo porque é o que é, é triste porque acaba e é lindo porque é triste porque acaba. Às vezes, quando eu me sinto triste ou com raiva do mundo e tenho vontade de me isolar-no-topo-de-um-morro-pra-sempre, me desafio pensando no quanto mesmo isolada-no-topo-de-um-morro-pra-sempre a minha vida dependeu, depende e vai depender da vida de outras pessoas. Alguém vai construir (ou pelo menos me ajudar a construir) a minha casa e esse alguém vai ter aprendido a construir casas com outro alguém, que por sua vez aprendeu com outro alguém. Mesmo se eu mesma plantar 100% da minha comida, alguéns passaram vidas observando a natureza e descobriu que era possível plantar comida e esses alguéns ensinaram pra outros alguéns e isso, de alguma forma, chegou até mim pelo Youtube no maravilhoso canal Vida Verde Sistemas Sustentáveis. A interdependência não tem fim. Às vezes eu fico brava com isso, porque percebo que seria impossível viver-isolada-no-topo-de-um-morro-pra-sempre e sim, eu preciso lidar com as coisas que eu não gosto da sociedade. Às vezes eu me sinto grata porque essa percepção me ajuda a valorizar os encontros repentinos que me tornam uma nova Marcela instante a instante e momento a momento. E alguns duram anos, viagens, casa e cachorros.