Se eu tivesse um blog, escreveria sobre Pobres Criaturas
Ou "só pode ter sido um homem que escreveu isso"
Aproveitei a última segunda, um dia tranquilo no trabalho e na vida pessoal, para ir ao cinema sozinha — algo que eu já não fazia há algum tempo.
Não tinha visto quase nada sobre Pobres Criaturas além da cena icônica de dança entre os protagonistas, então peguei minha Pringles de cebola e salsa e fui para a sala quase vazia assistir.
A jovem Bella Baxter, interpretada pela Emma Stone, é trazida de volta à vida por um cientista excêntrico. Ela se sente presa nesse mundinho limitado e encontra no advogado interpretado pelo Mark Ruffalo uma oportunidade de explorar a vida. Ela viaja em cenários esplêndidos por meio de um senso de liberdade atípico na sociedade onde foi inserida.
O filme é deslumbrante. Os planos abertos com céus em cores saturadas mescladas e construções luxuosas são de encher os olhos. Os figurinos, premiados no Oscar desse ano, são uma obra de arte.
Assim como a própria Bella, os figurinos são e não são daquela época, simultaneamente. Tem mangas bufantes, mas não tem corset. Tem tecidos luxuosos no torso, mas sem saias volumosas. Babados e quase uma hot pant no mesmo look.
Todo esse estímulo visual, junto da atuação realmente impressionante da Emma Stone e o humor sagaz de muitas cenas, tornam o filme uma experiência empolgante.
O sexo como fio condutor dessa narrativa, por outro lado, não me causou o mesmo efeito. Talvez na primeira ou segunda cena, mas não em todas as outras. Não quando tenta reforçar a mesma mensagem de novo e de novo. “Olha como ela é livre de amarras, ela transa e sente prazer sem pedir licença”.
É essa mesma repetição da mesma mensagem, em diálogos bastante óbvios, que gerou muitas críticas à Barbie, de Greta Gerwig. No filme sensação do ano, muita crítica especializada torceu o nariz para os discursos previsíveis, o tom educativo e politizado da história. Mas na obra de Yorgo Lanthimos isso parece ser magicamente perdoado, como se a genialidade estética compensasse uma escolha de roteiro pouco impressionante.
E o male gaze?
Por definição, o male gaze é simplesmente o olhar masculino. É o ato de retratar as mulheres no mundo, nas artes visuais e na literatura a partir de uma perspectiva estritamente masculina.
E esse é meu principal incômodo com Pobres Criaturas. O que a gente acompanha da metade do filme para frente é essa descoberta da vida através do sexo.
E não que isso não seja legítimo, mas é feito de uma forma que parece não levar em consideração como mulheres realmente sentem e exploram o próprio prazer — especialmente no contexto de uma mulher que está fazendo isso antes de ser moldada por pudores e morais socialmente impostos.
Sim, mulheres vão explorar sexo de formas diversas. Às vezes destrutivas. Vão se colocar em situações de risco, se dobrar por aprovação. Mas sob o olhar masculino isso não tem nuances. O único inconveniente para a Bella são os homens enciumados e isso me parece pouco realista até para um filme de sci-fi com comédia.
Daqui, fica a pergunta: de todas as coisas que uma mulher poderia fazer ao se ver livre de imposições sociais, será mesmo que transar repetidas vezes, quase exclusivamente com homens, seria a nossa escolha? Eu acho que não. Mas os homens parecem estar seguros de que sim.
E não é um puritanismo da minha parte. Eu gosto de boas histórias que falam de sexo abertamente. Mas eu aprecio quando elas têm camadas, quando as mulheres parecem mulheres de verdade, e não uma fantasia masculina do que é ser mulher.
Como em Pessoas Normais, com a história da Marianne da adolescência até a vida adulta, em múltiplos relacionamentos complicados, em alguns momentos abusivos, cheio de reflexões sobre o que ela realmente gosta ou o que faz porque quer agradar.
Ou em How to have sex, que passa por temas que realmente estão incrustados na experiência sexual feminina: amizades, desejo, pressão social e consentimento.
O olhar masculino que constrói uma história de jovens cometendo crimes como em Spring Break ou pelo olhar da Sofia Coppola em Bling Ring.
Ou o relacionamento entre duas mulheres retratado pelo problemático olhar masculino em Azul é a Cor Mais Quente, versus a representação da Céline Sciamma sobre o mesmo tema em Retrato de uma Jovem em Chamas.
E dá para citar inúmeras obras de todo gênero com mulheres reais, mesmo quando elas estão inseridas em cenários distópicos, paralelos a nossa realidade.
Porque o que eu e você temos em comum com todas as protagonistas dessas histórias é que temos vidas e desejos complexos, não-pasteurizados, não-lineares, que merecem ser reconhecidos.
Do contrário, sempre vai sobrar um gosto amargo na boca depois de assistir esse tipo de obra, não importa o quão aclamada ela seja.
Outros links
O processo de construção do figurino
2023 foi o ano do choro masculino no cinema
“Movies by women about women bc the male gaze needs to die” — uma lista de recomendações <3
Até a próxima!
é isto!!!!!!!!