Se eu tivesse um blog, escreveria sobre filmes feministas
Quem tem o direito de fazer arte e quem é obrigada a se explicar?
Mesmo através da ótica mais simplista e liberal de feminismo, atribuir o adjetivo “feminista” a uma coisa, um produto, sempre pareceu estranho. Livro feminista. Série feminista. Planner feminista. Ecobag feminista.
Uma expressão tão cooptada pelo mercado e usada à exaustão, que descola o significado político a ponto de soar meio cringe se dizer feminista (vocês também sentem isso acontecendo nos últimos anos?). Ainda assim, fui pega de surpresa quando uma das questões centrais no surto coletivo do lançamento de Barbie foi se ele era ou não um filme feminista.
Dos portais conservadores da direita preocupados com a mensagem passada a um público infantil até os blog alternativos da esquerda radical, todo mundo tentou bater o martelo em qual ponto do espectro político do filme está.
A Veja deu uma capa dedicada à Barbie pra falar de como o símbolo da patricinha sem noção, virou mulher liberada [sic]. Fora do Brasil o movimento foi parecido, a ponto do do LA Times lançar uma matéria para explicar porque a produção não é um símbolo do ódio aos homens.
Tanto a Greta Gerwig quanto a Margot Robbie responderam inúmeras vezes essa pergunta (o filme da Barbie é feminista?) e, em nenhuma entrevista negaram o título. Ao mesmo tempo, pareciam muito mais interessadas em falar sobre outras coisas.
O processo longo de produção que Robbie investiu para criar esse filme. A negociação com a Mattel para representar a empresa de um jeito pouco lisonjeiro. A forma interessantíssima com que a Greta Gerwig se entrega na direção e a conexão que isso gera entre ela e os atores.
Sobre arte, que é, no fim do dia, o trabalho delas. Mas esse é um direito amplamente negado a nós. Há quantos anos estamos respondendo “Como é ser uma mulher [insira aqui área de atuação]” sem podermos deixar que nossas próprias criações respondam essa pergunta?
Logo depois de assistir o filme, encontrei esse artigo sobre o peso atribuído a mulheres de ter que cumprir com uma agenda política em todas as produções artísticas. Ele já começa com uma pergunta que eu acho muito mais interessante: sequer importa que o filme de uma boneca seja feminista?
E num cenário cultural mais progressista, poderia um filme dirigido por uma mulher sobre bonecas Barbie ser feminista? É claro que isso ocorre após 15 anos de dominação masculina da Marvel nas bilheterias, bem como o universo cinematográfico da DC, o ressurgimento da franquia Star Wars , os prequels do Senhor dos Anéis e a presença contínua de filmes de Transformers.
À medida que os orçamentos continuam a aumentar, enquanto os filmes de orçamento médio têm uma estadia curta nas bilheterias, é compreensível ficar frustrado. Existe lugar para o cinema independente neste novo mundo? Como deveríamos nos sentir em relação aos nossos queridinhos cineastas independentes, como Gerwig, abraçando filmes de grande orçamento? E à medida que o cinema avança nessa direção, é justo recorrer aos sucessos de bilheteria em busca de comentários sociais astutos?
Eu não acho que seja incompatível buscar um cinema mais diverso, mais pautado no papel social da arte, mesmo em uma produção milionária. É justo e recomendado que se questione, critique. Mas, por décadas, os homens na arte tiveram o direito de fazer todo o tipo de filme sem se preocupar se era profundo o suficiente, indie o suficiente, político o suficiente.
Se ele dirige um filme de carros robôs, ele está exercendo o direito dele de criar algo para puro entretenimento. Se escreve sobre as agruras de ser um homem apaixonado, é o direito dele de contar a própria narrativa como narrativa universal. Eles puderam escrever fantasia, história de quadrinhos, super-heróis, romances, sexo, pastelões. Sem nenhuma barreira. Nenhum questionamento.
Gerwig não foi a primeira e não é a única voz que as mulheres têm no cinema. Esperar que o seu trabalho, ou qualquer outro trabalho, capte a totalidade do que significa ser mulher no mundo de hoje, parece irracional.
A mulheres como Greta, a ideia de sair alto padrão estabelecido pra ela como artista — independente, genial, quircky — era colocar em risco toda sua carreira. A ela não foi dado o direito de experimentar. De errar. De ser medíocre. O que ela não foi, de forma alguma, em Barbie. Nem no roteiro engraçadíssimo e moderno ou na direção sempre reconhecidamente atenciosa, inovadora e com referências artísticas das mais elevadas.
Eu entendo a frustração de quem teve as expectativas lançadas nas alturas procurando uma postura radical de feminismo, emancipação feminina e não encontrou. Mas eu não consigo desconsiderar a clareza da visão do filme em trazer um discurso como o da personagem da America Ferrerra quando a Barbie está lá no meio da maior crise existencial da vida dela.
Se num primeiro momento soa um pouco cringe e antigo, porque a gente já leu esse discurso nos grupos de discussão do Facebook há 5 anos, não é também muito perto dos desabafos que a gente ainda tem até hoje, numa mesa de bar depois do trabalho? Naquele momento que o namorado de uma amiga nossa é um lixo, num dia que aquele merda do nosso colega de trabalho repetiu tudo que a gente falou ou que a gente está discutindo algum crime hediondo contra uma de nós que passou no jornal?
Até a personagem adolescente do filme é criada a partir de visão sagaz e a própria Greta pontua isso na entrevista à tv pública australiana. Ela reconhece que essa relação de amor e ódio com a figura da Barbie e todas as crises que ela causou nas mulheres millenials não acontece da mesma forma na geração atual.
E que agora a gente vive esse momento complexo de mulheres 30+ que são mães de meninas chegando na adolescência — mas que não entendem o apelo que tem em um filme aparentemente bobo que conta uma história de emancipação feminina.
Então, pra mim, essa visão aqui faz muito mais sentido:
É um debate surpreendente para um filme como este. Tendo em mente que este é um filme feito para ser apreciado tanto por pré-adolescentes quanto por adultos, parece um pouco injusto dar à Barbie essa responsabilidade ideológica.
Se um filme simplesmente reconhece que o racismo existe, isso o torna antirracista? Se um filme tem personagens gays, isso o torna estranho? Se o patriarcado faz parte do nosso mundo e tem sido desde o início, não é simplesmente prático reconhecê-lo nos nossos meios de comunicação? E será que reconhecê-lo tem de vir acompanhado da bagagem acadêmica de análise e do fornecimento de uma solução que não estamos mais perto de encontrar no nosso mundo real e material?
Parece uma tarefa difícil para um filme que representa o patriarcado com frases como “brewsky beer” e “ Mojo Dojo Casa House ”.
Outros links
O artigo que eu citei sobre o bafafá todo desse filme ser ou não feminista
Eu assisti uma dúzia de entrevistas sobre Barbie, mas essa foi a minha favorita. Especialmente pela jornalista, que faz perguntas muito pertinentes e dá espaço para as duas responderem com a complexidade que cada questão exige
Eu tava com essas ideias na cabeça há um tempo já pra escrever, mas queria maturar um pouco melhor antes de sair escrevendo — e nisso, quase desisti por achar que o assunto já estava velho. Mas aí eu lembrei dessa edição da
e levei pro coração o que a diz:
Hoje eu só queria lembrar que há de haver tempo para tudo. Ou, pelo menos, tempo para o que importa.
E que, muitas vezes, o que importa está longe das telas, das redes sociais, das análises, dos likes, dos infoprodutos.
O que importa dura mais do que 24h.
Até a próxima!
É aquela coisa: se a gente "reduz" Barbie a um filme feminista, afasta o público e parece que é só panfletário. Se finge que não é feminista, apaga todas as alfinetadas que Greta faz no patriarcado. É sempre uma armadilha, o tal do catch-22 que os caras não têm que lidar porque a bola sempre foi deles (e a quadra também). Eu acho que dá pra achar um meio termo ali, saber apreciar os comentários sociais feitos pelo roteiro ou apenas se jogar no mundo cor de rosa e fazer a dancinha da Dua Lipa sem medo de ser feliz. Não precisa ser 8 ou 80, e certamente dá pra curtir Barbie sem querer fazer um TCC sobre, porque o filme é sim ótimo e divertido. Nem tudo precisa ser encarado com tanta seriedade :)