Esse texto é, na verdade, uma carta de natal. É o presente que escolhemos oferecer no amigo secreto organizado pela Paula e construído por esse grupo delicioso de pessoas que escrevem. O compilado do ano passado está aqui, se você quiser espiar como funciona.
Essa é a carta para a minha amiga secreta desse ano — e que eu compartilho com vocês também. :)
A primeira casa que eu dividi com a minha companheira era… imperfeita. Construída com materiais de demolição, ela era como um quebra-cabeça antigo. Algumas peças encaixavam perfeitamente, oferecendo aquela sensação inebriante de quando algo perdido em uma pilha que parecia grande demais simplesmente se torna uma coisa só. Outras peças foram avariadas com o tempo. Inchadas, trincadas, arranhadas, com um pedacinho faltando. Juntas, ainda montavam uma figura coesa, mas não perfeita. Só que era nossa e era um lar.
Há uma rachadura em tudo, e é assim que a luz entra, disse Leonard Cohen. E tudo tinha um charme intrínseco naquela casa, que ficava no ponto mais alto de um morro, rodeada por uma área de preservação permanente. Uma floresta.
As frestas na janela que davam para o mar, o piso de madeira com buracos que a gente aprendeu a evitar sem nem olhar, o ranger do piso do quarto que acordava alguém a cada ida no banheiro no meio da noite e o rombo no telhado da sala, por onde uma cobra um dia colocou a cabecinha para fora para espiar.
Não era projetada para dar conta do frio congelante que o vento sul trazia no inverno, nem das chuvas torrenciais de verão. As frestas no telhado garantiram não só uma quantidade enlouquecedora de goteiras, mas também um número considerável de cobras vivendo no forro — que a gente preferia não saber a extensão. Como o Prédio 20 do MIT, era uma construção inadequada.
Mas era também uma incubadora mágica. No frio, viramos especialistas em acender a lareira e fazer chocolate quente. Aprendemos a ler os ventos e nuvens que sinalizavam a chuva e preparávamos os baldes e panos para conter os danos. A família de cobras, descobrimos, não tinha veneno e se tornou nossa história preferida contar para arrancar olhares de surpresa.






Como você elaborou aqui, amiga-secreta, a criatividade surge das conexões entre coisas diferentes.
Todo mundo sabe disso. Existem mil livros te falando sobre como ser mais criativo. Grande parte deles enfatiza que o cérebro solitário é muito menos favorável à criatividade. E especialmente após a pandemia…
todos nós sabemos que as conexões físicas ainda importam.
E acredito que grande parte de nós já sacou que não precisamos de acréscimos, mas de recombinações. Então porquê a gente insiste em focar em uma coisa só quando é a diversidade que nos torna criativos?
Quando decidimos que era hora de encerrar a história com o nosso QG na montanha e procurar uma casa nova, fizemos uma lista de pré-requisitos. Tinha que ser perto da praia. Precisava ter espaço para passear com os cachorros. As gatas precisam ter acesso a um lugar com luz e sol (longe dos cachorros). Precisa de quintal. O resto, a gente arranja.
No bairro que mais queríamos, só tinha um problema em comum: as casas-caixote. Não sei qual o termo arquitetônico, mas por aqui elas se disseminam como gremlins. São geralmente brancas ou cinzas, com aberturas em preto. O telhado é reto, não tem aquele formato que a gente aprendeu a desenhar quando criança. Muitas delas são geminadas.
Não era um fator determinante, mas incomodava. Passamos anos dando risada das casas-caixote pela falta de personalidade, de aconchego, de nostalgia do que era uma casa na nossa memória. Só que foi numa dessas que nós construímos nosso lar. Foi também a primeira vez na nossa vida que contratamos arquitetos para reformar a casa por dentro. Num mix intenso de absoluta alegria e desesperador estresse, foram meses sonhando com a casa de onde eu escrevo agora essa carta.
Por isso, eu compartilho da revirada de olho que você deu ao ouvir a colega falar que “agora tudo é nicho”. Como pode ser nicho a ideação de uma casa, se a vida se esparrama para cada canto dela?
Se, preocupada com as contas do mês que apertaram com a doença misteriosa da minha gata, eu acesso minha cozinha determinada a criar o máximo de refeições com o que já tenho em casa; sento na poltrona do escritório com a planilha de finanças abertas esticando as funções matemática ao limite para ver o saldo positivo como resposta; volto para a sala e, quando vejo minha esposa despreocupada jogando Dave the diver no nosso sofá exageradamente grande e fofinho, deito no colo dela e espero um cafuné.
O mesmo sofá que recebe minhas amigas que se amontoam nele, ligam a tv, dividem uma coberta e até tiram uma soneca. Que antes já tinham ocupado minha cozinha fazendo pão de alho e salada de batata para acompanhar o churrasco. E então passam horas transitando entre os cômodos até já ter escurecido lá fora e alguma delas falar “e uma pizza, hein?”, fazendo todo mundo migrar para a mesa por mais algumas horas.
A mesma mesa que fica entre a cozinha e a sala e é o ponto de encontro quase toda a manhã para um café com frutas, pão, ovos mexidos, um pouquinho de abacate ou alguma pastinha nova que eu inventei. Que já presenciou risos, choros, brigas e reconciliações. Onde a nossa gata também senta junto para compartilhar a refeição, deixando aquela cadeira linda que a arquiteta sugeriu completamente imunda, porque ela não gosta de tomar banho e vive com o pé encardido.






E tudo isso foi tocado pelas mentes curiosas, criativas e não-conformistas das pessoas arquitetas que trabalharam comigo e com a minha esposa. Acho que eles concordariam com você: a gente não quer só arquitetura.
A gente quer arquitetura, diversão e arte, claro. As pessoas querem uma experiência estética. Querem se emocionar e se sentir donas de si. Portanto, ao projetar, pense espaços que sejam fáceis de adaptar e se inspire em algo “não arquitetônico”.
Querida amiga secreta Luciana Florenzano, da instigante e deliciosamente bem escrita disso eu sempre me lembro, te ler me levou de volta para uma das experiências mais legais dos últimos anos: sonhar e construir um lar com a pessoa que eu amo. E que presente você me deu ao me lembrar que o fim do ano pode ser sobre construir novas portas e derrubar algumas paredes, assim como eu fiz aqui em casa.
Que seja um ano lindo para você, sem nicho e muito espaço.
Essa é também a última edição da se eu tivesse um blog em 2024!
Muito, muito, muito obrigada a cada pessoa que leu, compartilhou, comentou ou me respondeu um desses emails que eu escrevo com o coração aberto sempre que posso. Se o fim de ano é a época dos clichês liberados, preciso aproveitar para dizer: vocês são o que dá sentido para tudo isso.
Até ano que vem!
Eu vi e vivi a saga, tanto do QG da montanha quanto da nova casa beira-mar.. O QG da montanha tinha aquele charme rústico, de difícil (quase impossível) acesso. Onde descobri q minha nora era uma exímia escaladora de montanhas pilotando um 4x4, que me deixava assustado, mas seguro. Mas a vista da montanha era a coisa mais linda, valia cada medo sentido na subida. A casa da praia deixou este pai mais tranquilo, porque o acesso é "normal", sem riscos de rolar montanha abaixo. E devo dizer que a "casa caixote" q adquiriram se transformou num lindo e aconchegante espaço, tanto para os humanos, quanto para os pets e estes, nunca mais terão tutoras tão dedicadas e carinhosas em suas vidas. Bjs, filha(s)!!
Lindo, lindo ❣️