STB: irmãos são estranhos com quem crescemos junto
entre filmes duvidosos da Netflix, um lançamento que vale a pena
Em uma tentativa de criar meu próprio mundo, onde lançamento não se restringe às coisas com menos de 24 horas de vida, vou me dar a licença poética de tratar As Três Filhas como algo novo, já que saiu em setembro na Netflix.
Eu assisti no dia 25 e no mesmo dia comecei a escrever esse texto — mas entre viagens a trabalho, a comemoração dos meus 31 e um planejamento de trimestre no meu emprego corporativo, é hoje o dia dele chegar aqui na sua caixa de entrada.
Espero que gostem da indicação, das minhas reflexões ao ver esse filme surpreendente — e também desse acordo entre a gente de que é absolutamente normal não assistir tudo e dar o assunto como encerrado em um ciclo de 48 horas.
Eu evito falar da finitude da vida dos meus pais. Não por uma negação da inevitabilidade desse acontecimento ou por qualquer tipo de tabu de que assuntos mórbidos não devam povoar sequer nossos diálogos internos, quem dirá conversas tidas em voz alta.
Tampouco porque esse seja um tema delicado na minha casa. Tanto meu pai quanto minha mãe, dois adultos na casa dos 60 com bastante saúde para oferecer, falam da morte com naturalidade. Não têm expectativas de viver até os 100, dizem inclusive preferir não prolongar essa história tanto assim.
Mesmo sendo duas pessoas muito diferentes entre si, olham para o fim com a mesma abordagem prática com que veem a vida: vai acontecer, então qual sentido lamuriar-se? Vivemos até aqui, e vivamos, daqui para frente, até quando fizer sentido, então.
Herdei os pés chatos e o cabelo precocemente grisalho do meu pai. Ganhei a cintura fina com quadril largo e os cachos frisados da minha mãe. Minha pele amarelada é uma mistura evidente da cor de ambos. Mas eu, diferente deles, morro de medo da morte.
Correndo o risco de soar egoísta, preocupo-me especialmente com a minha morte. Não tanto pela parte que acontece em vida — a doença, o começo do fim. Mas o depois. Eu não gosto de fazer uma trilha sem saber a distância, o tempo esperado de conclusão e o tipo de elevação no caminho. Logo, não é de se espantar meu desconforto com a ideia de uma jornada sobre a qual eu não tenho nenhuma informação.
Além disso, acho injusto. Como pode ser certo que eu tenha, por um infinito de interdependências, me materializado aqui nesse mundo, nessa dimensão, experienciado tudo de mais incrível, surreal, prazeroso, lindo, intrigante e amoroso nessa vida para então, sem nenhum poder de contradição, precisar partir? Sem nenhuma explicação do que acontece? Logo comigo, tão dedicada (e bem sucedida!) em encontrar qualquer tipo de informação? Não, não me parece certo.
Mas tem uma coisa que talvez mude tudo, todas essa percepção: ver a morte de perto. Digo talvez porque sou esse tipo de sortuda: eu nunca vivi a perda de alguém muito próximo. Meus avôs morreram antes de eu nascer ou quando eu era só um bebê. Meu padrinho e minha avó paterna faleceram há pouco tempo e, embora eu sempre vá carregar uma caixa das memórias mais bonitas deles no coração, este não se partiu quando eles se foram.
E é a antecipação desse rompimento que costura a delicada, potente e emocionante narrativa de His Three Daughters. Adorei o título em inglês, porque estabelece o que nós vamos ver construído nesse drama familiar: Katie, Christina e Rachel são irmãs porque nasceram do mesmo pai, e nada mais. É a existência dele o único elo que mantém as três naquele apartamento — que é um personagem da trama por si só. Isso e o fato de que elas já perderam as próprias mães. Por isso, sabem o que vem pela frente quando são chamadas por um médico de cuidados paliativos para esperarem juntas o iminente último suspiro de Vince, o pai.
A cena inicial apresenta as três personagens em um plano fechado. Cada uma delas, sendo apresentadas uma por vez, quase centralizadas no quadro. Ao fundo, o que se vê conta uma história também.
Em frente a uma parece branca, usando uma blusa preta de gola alta, Katie fala sobre burocracias da morte e como todas devem ser racionais em um momento já sem esperanças.
Christina, chorando enquanto pede desculpas e afirma que não vai ser assim por todo o período que ficarão ali confinadas, está a frente de uma área com plantas, livros, porta-retratos. A iluminação é quente e acolhedora enquanto cita a família que ficou em outra cidade e se esforça para sorrir ao falar do pai.
Rachel aparece sobreposta a um canto não exatamente bagunçado, mas também não particularmente decorado ou arrumado. Um canto despido de vida. Ela pouco fala e encara um não-lugar, como quem já está partindo desse plano também.
É quase uma caricatura, mas só quase. Alguns monólogos parecem quase perfeitamente desenhados para reforçar essas personalidades, mas só quase. O roteiro entrega sempre o suficiente sobre a vida privada de cada uma delas — nunca demais a ponto de parecer educativo, nunca de menos a ponto de ser superficial. E o trio de irmãs interpretado por Elizabeth Olsen, Natasha Lyonn e Carrie Coon é o que realmente dá vida a essa história sobre a morte. As atrizes são impecáveis na entrega, nas interações em cena, na construção de uma tensão que nunca realmente rompe aquele elo por completo.
É como uma panela de pressão. Você vai ouvindo o chiado baixinho. Então, ele cresce, vai subindo até ficar realmente assustador. Um grito no fundo. Mas ela nunca explode. Alguém vai lá e, mesmo sendo uma técnica duvidosa, enfia um garfo e libera a pressão daquele pino vermelho que apita de forma ensurdecedora, trepidante. Tem água respingando e vapor embaça as janelas. Mas condensa. Aquilo que parecia um hiperestímulo, agora é manejável.
Em uma review do Letterboxd alguém descreveu o filme como “não só uma meditação sobre o luto e a morte, mas sobre a vida e o amor”. E é mesmo, com todos os longos silêncios desconfortáveis entrecortados por enxurradas de pensamentos intrusivos que, às vezes, vencem e saem da boca tão ou mais descompensados do que pareciam dentro dela. Se a morte, como dizem, traz a superfície o melhor e o pior que temos a oferecer, a comparação com a meditação me parece irretocável. Não por acaso, fugimos — de sentar em silêncio, da morte, do desconforto.
Eu não amei o final, mas ele não estragou em nada para mim a experiência de acompanhar essas três mulheres atravessando com coragem o tipo de jornada onde a única coisa a fazer é, talvez, a mais difícil: esperar.
Outros links
Siblings are the strangers we grow up with é o título dessa edição e a frase de abertura da review de As Três Filhas no The Washington Post. Lá, assim como no meu Letterboxd, o filme foi avaliado com 4/5 estrelas.
“Aqui está uma pergunta estranha: você já assistiu uma cena e pensou ‘essa é uma ótima cadeira!’. Não no sentido de que seria uma ótima cadeira para se ter em casa, mas ótimo porque alguém tomou tempo para encontrar exatamente a cadeira certa para a história”.
Essa é a introdução de um vídeo que eu amo sobre… cadeiras. O Tony, que tem esse projeto maravilhoso chamado Every Frame a Painting, fala sobre como um prop de cena simples como uma cadeira pode contribuir para uma narrativa. Em As Três Filhas, tem uma poltrona que parece viva em cena. Se for clicar em um único link dessa edição, clica nesse!E para a minha surpresa, a trilha sonora inteira do filme é do Rodrigo Amarante! “Quando eu estava escrevendo As Três Filhas, estava pensando no Rodrigo. Eu mandei o roteiro para ele na esperança de que isso o inspirasse a escrever músicas.”, foi o que o diretor Azazel Jacobs contou sobre o processo. A playlist com todas as músicas é essa aqui.
Ver o filme me lembrou muito desse episódio do podcast Coemergência com a médica especialista em cuidados paliativos Ana Claudia Quintana Arantes. Ela tem livros dedicados a compartilhar essa experiência, mas esse papo é íntimo e muito, muito bonito. Realmente vale a pena.
Até a próxima!
amiga, concordamos muito! 👏