Enquanto muitas das minhas amigas planejavam viagens para a Disney ao fazer 15 anos, essa ideia sequer cruzou minha mente. Faz parte, talvez, da experiência de ser uma aluna bolsista em uma escola particular da cidade interiorana de onde vim. Nós tínhamos as mesmas aulas, usávamos os mesmos uniformes, comíamos os mesmos lanches, íamos nas mesmas excursões. Mas o que acontecia antes do primeiro sinal e depois do último, era um mundo incomparável. Incompatível.
Então quando eu comecei a estudar a possibilidade de viajar para fora do país em 2025, precisei me preparar antes para um rito burocrático que nunca imaginei que chegaria: tirar o visto americano.
Organizei uma viagem curtíssima de Florianópolis para São Paulo, tentando minimizar o quanto possível o custo desse papelzinho que eu tanto queria. O plano era sair daqui de madrugada, chegar a tempo do meu primeiro agendamento, partir para a entrevista, passar a noite no hotel mais barato-mas-decente numa região central e voltar no dia seguinte.
As (pouco mais de) 24 horas de São Paulo foram mais ou menos assim.
Terça, 17 de setembro, 4h30
Antes mesmo do celular despertar, eu já estava de olhos arregalados na cama. Sem pensar muito, catei o aparelho e saí do quarto para oferecer meia hora extra de sono para a minha esposa.
No dia anterior, deixei minhas roupas de viagem e a necessáire com o básico para lavar o rosto e escovar os dentes. Me vesti, ajeitei os cachos curtinhos indisciplinados, cuidei dos bichos e desci para a cozinha. Não é certo sair de casa sem tomar um gole de café preto, mesmo que ainda não seja nem 5h da manhã.
Acordei a gata com um cheirinho no pescoço e em 15 minutos ela compartilhou uma xícara de café comigo. Depois, me levou para o aeroporto.
Terça, 17 de setembro, 5h30
E lá fui eu embarcar nesse voo para Congonhas. Sozinha. Não tenho grandes questões com viajar solo, num contexto amplo dessa experiência. Me viro bem em ambientes desconhecidos e sou agilizada para encontrar o que preciso fora de casa. O problema é o voo em si.
Eu odeio andar de avião.
Sempre que falo isso, me perguntam se sofri algum tipo de trauma no passado. Não aconteceu nada, explico envergonhada. Por algum motivo, acho totalmente besta ter medo de andar de avião. Mas essa é a minha realidade hoje: a decolagem e o pouso são momentos torturantes e o que fica no meio deles não fica muito melhor.
Fui uma das primeiras a entrar no avião e me acomodei na poltrona 15C. Saídas de emergência tem mais espaço, algo que eu valorizo até mesmo nas viagens mais curtas de 1 hora como essa. Ainda assim, com o desconforto sentido em cada centímetro de pele, um pequeno presente do acaso: ninguém sentou na minha fila e ganhei o espaço exclusivo para acompanhar o nascer do sol durante a partida.
Is this… lucky girl syndrome? ✨
Terça, 17 de setembro, 7h
Desci do avião horas antes do meu primeiro compromisso para tirar o visto e o local fica há menos de 10 minutos de carro dali. Então, nesse momento, só tem um desejo me preenchendo: um pão na chapa com requeijão na entrada.
Talvez para você, pessoa que mora em São Paulo, pareça um desejo banal. Mas não para mim, moradora da ilha de Florianópolis. Não só o pão na chapa é uma raridade de ser encontrada por aqui, como o conceito de padoca como um todo também. Poucos lugares abrem tão cedo e a chapa não faz parte do equipamento padrão das padarias na minha cidade.
Um avocado toast num café metido? Temos da mais alta qualidade. Um misto quente honesto em qualquer café? Tem também. Salgados variados? Claro. Mas um pãozinho na chapa antes das 8h da manhã? Raro, raro.
Fui na padaria mais próxima e não teve erro: me foi servido um pão francês com uma quantidade obscena de requeijão, perfeitamente tostado. E um cafezinho preto, claro.
Devidamente alimentada, começa a romaria.
Terça, 17 de setembro, 9h30
Se sua única experiência com São Paulo fosse uma visita ao Centro de Atendimento ao Solicitante de Visto (CASV), talvez você reverberasse o estigma de que paulistano gosta de filas.
O documento de confirmação de agendamento para atendimento no CASV é muito claro: chegue 15 minutos antes do horário marcado, mas apenas 15 minutos, não mais. E chegando no local, fica fácil entender o porquê. Eu, que esperava um prédio público com pompa burocrática e protocolar, precisei de alguns minutos para me adaptar a realidade que se apresentou ali.
Um mar de gente ocupava não só o hall de entrada do prédio, mas também uma longa extensão da calçada, a ciclovia e também o outro lado da rua. Diferentes agentes da organização gritavam a plenos pulmões instruções de onde deve se posicionar cada grupo.
Uma fila é apenas para quem veio retirar o passaporte. Outra, para quem chegou na hora indicada a quem está tirando o visto. E uma terceira para todos os outros que ignoraram o horário sugerido. Essa fila é a que mais ocupa a área externa.
Entro na trilha indicada e sigo as instruções que cortam o espaço em altos decibéis: celular desligado, passaporte e formulário de confirmação na mão, direto para o scanner. Atravesso com sucesso o primeiro trajeto, passo pelo scanner e sigo para a segunda fila do processo.
Só que essa não é uma fila. É um aglomerado de gente diversa, desde os atrasados que deveriam ter chegado às 8h até os mais ansiosos que agendaram atendimento às 11h mas preferiram chegar mais cedo “só para garantir”. É só esperar que eles chamam por horário, disseram. E surpreendentemente funciona. Logo fui chamada e entrei para a terceira fila em menos de 30 minutos.
Essa parece a fila onde realmente as coisas vão se resolver. Tem faixas dividindo o fluxo em zigue-zague. Um segurança que libera um número razoável de pessoas ao mesmo tempo até os guichês. O mesmo segurança que grita — e aqui, mais uma vez, não é hipérbole, realmente grita — para um argentino que pegou o celular do bolso e para conversar com um interlocutor desconhecido. A vergonha deixa a barulhenta sala silenciosa por alguns minutos.
Quando chega minha vez ao guichê, descubro que ali é apenas uma checagem do agendamento. Um ponto da jornada apenas para ver o formulário e dizer “realmente, é um agendamento para hoje, pode seguir”. Sigo as setas no chão que me levam para o segundo andar.
Mais 30 minutos para ser direcionada a um novo guichê iluminado, onde coletaram minhas digitais e tiraram uma foto para o caso do visto ser aprovado. Percebam que esse relato não tem um trecho sobre um bom banho, o uso dos meus bons produtos de cabelo e do meu compacto-mas-eficiente kit de maquiagem. É porque nada disso aconteceu. Eu não vi a foto, mas eu sei que minha pele estava sebosa, meu cabelo (que ainda pediram para colocar atrás da orelha!!!) estava desgrenhado e abaixo dos meus olhos duas olheiras coroavam o que, com certeza, não vai ser meu melhor registro.
Terça, 17 de setembro, 12h30
Depois de um longo trajeto até a segunda parada obrigatório no processo de tirar o visto, um bom almoço executivo no shopping e um momento de negação seguido de resignação de que eu ia pagar R$50 para guardar minha mochila, chegou a hora de entrar no consulado.
Aqui a experiência ficou mais próxima das minhas projeções. O prédio é bonito, com muros e calçadas de pedra bem cuidados. A primeira fila é coberta por um telhado transparente e arcos metálicos marrom. É agradável, arejado e deixa a luz entrar, mesmo com o céu cinza que imperava desde cedo.
Fiz o processo todo com apoio de uma assessoria que lidou com boa parte da burocracia para mim e elas avisaram um dia antes: vá com paciência, porque o atendimento pode demorar até 3 horas para acontecer e você não vai ter acesso a um celular durante todo esse tempo. Claramente outras pessoas não receberam o mesmo aviso, porque em menos de meia hora nessa primeira de muitas filas que ainda viriam no consulado americano, as reclamações preencheram o espaço.
Como crianças habituadas a assistir Patrulha Canina e de repente tem sua telinha arrancada, o grupo de adultos entediados demorou pouco tempo para ficar agitado. Algumas pessoas chamaram os seguranças já irritadas para entender o porquê da demora. Uma moça me cutucou para perguntar se eu achava que ia demorar muito. “Vai sim, moça. Melhorar se preparar, porque está só no começo”. E eu estava certa.
Só para passar pela revista foi mais de uma hora. Dali, a horda toda foi encaminhada a uma segunda fila, que por algum motivo que eu saí de lá sem entender, não tem nenhuma função. É uma fila para entrar em outra fila. Essa, a última do dia. Era a fila da entrevista.
Vou para Austin, no Texas. Para participar do evento SXSW. É um evento de inovação e tecnologia, relacionada ao trabalho. Gerente de Marketing. 14 dias. Março de 2025.
Essas eram as respostas que a assessoria me orientou a ter na ponta da língua. E cada uma delas deveria ser respondida com uma expressão tranquila, adequadamente sorridente. Sempre olhando nos olhos e sem alongar nenhuma explicação que não tenha sido pedida.
Se você chegou até aqui e de alguma forma essa história te tocou, você pode contribuir com meu projeto me pagando um cafezinho. Assim eu continuo escrevendo e a gente continua conversando. Isso não é uma inscrição, só um apoio pontual, ok? :) O pix é meu email: marinajulianag@gmail.com (sim, meu nome é Marina Juliana, e não Maria Julia).
Mas o momento é cruel: dá para ouvir todas as entrevistas que acontecem em menos de 3 minutos, com o requerente em pé, separado por um vidro do entrevistador. Os papéis de negativa saem quase na mesma medida dos de aprovação. Curiosamente, eu estava mais tranquila ali do que nos dias que antecederam a viagem. Organizar tudo gerou muito mais estresse do que esperar.
Na minha frente, um homem muito mais novo que eu, com cabelos azuis que combinavam com o conjunto de moletom da Adidas escolhido para esse grande evento, estava impaciente. Quando chegou à entrevista, eu só conseguia ouvir as respostas dele:
— Cantor e compositor.
— Nunca. Já viajei bastante pelo Brasil, mas não para o exterior.
— Não tenho nada, não.
Depois disso, fui conduzida por uma agente para outro guichê. “Esse aqui vai fechar agora, moça. Pode vir por aqui.”
Chegou minha vez e, algumas perguntas depois, meu visto foi aprovado. O entrevistador, simpático e com um sotaque estadunidense muito carregado, terminou a conversa falando que ele mesmo é de Austin e que estará lá ano que vem para o SXSW. “Que maravilha! Bom trabalho para você”, eu respondi.
Quando fui buscar minha mochila no guarda-volumes do outro lado da rua, uma agente de influencers estava lamentando a negativa que o cantor de cabelos azuis tinha recebido. A mulher que conversava com ela ralhou: eu te avisei que se mentisse sobre o antecedente criminal não ia passar. Ainda mais sendo influenciador! Depois da Deolane, duvido que eles vão deixar alguém dessa agência passar.
Terça, 17 de setembro, 16h30
Larguei a mochila no quarto reservado no Ibis Budget da Frei Caneca e fui atrás de comida. 3 horas de pé abriram meu apetite como nunca. A ideia era ir no shopping da mesma rua, porque eu honestamente estava com poucos critérios a essa altura do dia e ainda precisava voltar para o hotel terminar uma demanda do trabalho.
Cruzei no caminho com um café pequeno, com luzes amareladas e uma grande janela de vidro na frente. Passei reto por alguns metros, mas então decidi voltar. Era a Kez Padaria. A vitrine estava recheada com bagels e pães, além de donuts, new york rolls, muffins e bolos.
Nos fundos da padaria, é possível ver a produção acontecendo. Poucas mesas, conversas num tom baixo, sem música. Era tudo que eu precisava depois de um dia tão sobrecarregado de estímulos. Pedi um bagel de parmesão recheado de cogumelos, rúcula, cebola roxa e cream chesse com cebolinha. Era divino.
Terça, 17 de setembro, 20h45
Trabalhei até 8 da noite, tomei um bom banho, pedi a janta no Hipokee com direito a mousse de chocolate com chips crocante de coco (vale a pena, vai por mim) e antes das 10h30 já estava em um sono profundo. Ou o quão profundo dá para ser quando você tem 30 anos, está longe de casa e os travesseiros são moles demais para deixar sua coluna perfeitamente alinhada.
Quarta, 18 de setembro, 7h
Acordei, tomei uma ducha para acordar e fui atrás de um café. Por sorte, mais uma vez, é São Paulo. Literalmente tinha uma padaria aberta já do outro lado da rua. Só um puro, para me dar forças de ajeitar a baguncinha de roupas e cabos que deixei na noite anterior na mesa do quarto.
Isso porque eu tinha um último plano antes de deixar a cidade: comemorar adequadamente meu visto aprovado tomando um cafezão no Cuscuz da Irina. E lá fui eu, com minha mochila e uma barriga roncando de fome.
O lugar é lindo, de encher os olhos mesmo. Confortável também. As atendentes são gentis e dão boas indicações. Pedi um menu completo: uma macaxeira com ovo e queijo coalho para começar, um bolo de milho com goiabada para fechar. Se pudesse, passaria horas ali, só pedindo cafés e comidas gostosas com trilha sonora brasileira embalando ao fundo.
Mas um outro voo me esperava.
Quarta, 18 de setembro, 12h30
Estava orgulhosa de mim. Mesmo com a demora do embarque, o caos habitual de pessoas entrando e batendo com suas mochilas e malas em quem já está sentado e o fato da Gol vender uma poltrona chamada Conforto por R$ 50 que não comporta uma mulher do meu tamanho, não me estressei.
Aproveitei a poltrona do meio vazia para me esparramar como dava, coloquei o lo-fi que tinha baixado no Spotify para tocar, peguei meu kindle e segui com minha leitura. O avião decolou e eu continuei respirando tranquila. “Já é um começo”, eu pensei.
Só que durou pouco. Menos de 5 minutos no ar e a voz do comandante atravessa as poltronas avisando que vamos passar por uma zona de turbulência. Mal ele termina o recado e a comissária de bordo que vinha com duas bandejas na mão é lançada para frente no corredor, se mantendo em pé com passos largos até a cadeira mais próxima e caçando com maestria as comidas que foram igualmente projetadas à frente.
Foram mais de 30 minutos de turbulência. Do tipo que não dava mais para ler sem enjoar. Do tipo que gera pequenas quedas livres, deixando órgãos vitais por tempo suficiente para lembrar uma montanha-russa — mas eu nunca esqueço que não é um brinquedo de parque de diversão.
Um tempo atrás perguntei para minha companheira se ela nunca ficava com medo de voar. Ela disse que às vezes ficava e que nesses momentos dizia para si mesma e para alguma entidade maior que nós: me dá mais um pouco de tempo!
E hoje foi isso que eu repeti até aquela aeronave adquirir de volta algum estado que eu pudesse chamar de estabilidade: ainda não, mais um pouco de tempo, por favor!
Hoje não tem outros links porque a edição já está bem recheada de fotos e fofocas. Ah, e esse texto foi escrito depois desse voo traumático, então se tiver qualquer erro ortográfico no caminho vocês me perdoem dessa vez!
Até a próxima!
Adorei essas 24h que renderam até fofoca. Agora eu que lide com a minha curiosidade pra saber quem é o cantor dos cabelos azuis!! Ah, e que vontade de pão na chapa!
No começo do texto pensei que você era do interior e não da capital Florianópolis. Eu vim de uma cidade realmente interiorana de 10 mil habitantes e moro em Florianópolis. Já fui pro sxsw e deu uma vontadinha de ir de novo. Minha sugestão é não focar apenas nas palestras, é ir pra rua e viver as experiências que o evento nos proporciona.