Se eu tivesse um blog, escreveria sobre a cultura da dieta
A gente se agarra em muita mentira pelo direito de ser feliz
Minha companheira foi viajar por quase duas semanas e eu já imaginava que o tempo sem outra voz na casa ia dar mais espaço pro barulho mental. Vi impacientemente passarem pela minha cabeça as dúvidas, as flutuações de humor, as ansiedades, os mecanismos de fuga e a busca genuína ao mesmo tempo de me manter presente. A sequência de dias chuvosos sem poder sair de casa não facilitaram também.
Nesse cenário, agenda vazia é oficina do Instagram e eu passei uma quantidade de horas além do normal rolando o feed. E foi nessa mistura de tédio, tempo livre, fuga e curiosidade que a história de uma influenciadora virou uma leve obsessão.
Ela passou pelo processo de bariátrica e perdeu algumas dezenas de quilos. Agora, abriu uma comunidade focada, nas palavras dela, em transformação. Onde mulheres podem trocar suas histórias de sucesso no emagrecimento e se incentivarem nessa jornada.
Até aí, tudo bem. Uma cirurgia não é intrinsicamente boa ou ruim. É sim assustador ver o quanto procedimentos complexos são trabalhados como meros produtos nas redes sociais e como é triste saber que tem gente fazendo muito dinheiro indicando métodos invasivos e desnecessários. Mas esse não foi o ponto que me fisgou.
Nas publicações feitas para chamar o público para essa comunidade, as histórias variavam, mas voltavam sempre para um mesmo ponto-chave: quando eu era gorda, era incapaz de ser feliz. Mas depois que eu emagreci, tudo mudou. Agora eu tenho confiança no meu trabalho. Na imagem que eu passo. Na minha capacidade física. Olha só, eu emagreci e agora posso correr. Agora posso pedalar. Agora faço mais dinheiro. Agora, magra, sim. Antes, gorda, não.
Esse discurso é cruel. E é especialmente cruel porque é mentira. Mas é suficientemente sedutor para não ser percebido de imediato.
Mesmo com os anos que separam a Maju adolescente desesperada para emagrecer da minha versão de hoje, ainda me pego acreditando nessa narrativa. Frustrada, impaciente com o tempo do meu meu corpo para executar o que eu teimosamente exijo dele, às vezes.
Nessas horas eu penso: será que se eu ficasse mais magra, de repente, não ia ser mais fácil correr esses 5km? Será que eu não ia ser mais confiante? Será que eu não ia fazer uma prancha na aula de yoga já? Será que não seria mais feliz?
Só que quando usei o remédio milagroso do momento aos 16 anos, eu não conseguia fazer nada disso. Nem correr, nem me pendurar numa parede de escalada, nem virar de cabeça pra baixo numa aula de yoga, nem levantar minha voz para defender meus desejos, nem me sentir bonita de verdade.
A única coisa que eu conquistei foi uma série de episódios de taquicardia, alguns atendimentos no pronto-socorro e uma coleção de histórias de desmaios em lugares inusitados. Eu não conseguia nem ficar sentada para fazer o exame no coração sem ter teto preto.
Eu tinha 1,73 e 60kg. Usava calça tamanho 40 e tinha saboneteiras realçadas. Vestia camisetas M e desfilava pela casa com o biquini novo de amarrar na lateral do quadril.
Também levava marmita para ir na pizzaria com os meus amigos, sabia de cabeça a caloria de cada alimento, treinava compulsivamente na academia e tinha uma fome constante que até hoje, 15 anos depois, parece que eu não consigo saciar.
Aquela foi a minha versão mais magra. Eu nunca fui tão infeliz.
Essa percepção me desolou. Porque muita gente me prometeu que eu ia ter uma vida nova. Prometeram que quando eu perdesse aqueles quilos, ia ser feliz. Que a confiança que eu ganharia com o corpo novo reverberaria em todas as áreas da minha vida. Que eu ia encontrar namoradinhos com mais facilidade. Que eu ia me sentir ótima quando usasse um biquini de novo. Mas era tudo mentira.
E é essa mentira que segue sendo repetida por essa influenciadora, mas por tantas outras que nem faz sentido citar quem é. Sai a contagem de pontos ou calorias, entra a balança e a contagem de macros. Sai a sibutramina, entra o ozempic. Saem as revistas, entram as redes sociais.
O que fica é um grupo grande demais de mulheres incapazes de saciar a própria fome, reféns de uma calculadora constante definindo se o que elas comem é justo ou não. Merecido ou não.
A
, escritora do livro “A cultura da dieta é tóxica”, fala justamente dessa atribuição moral às escolhas alimentares de uma forma muito esclarecedora:Estamos inseridos em uma cultura da dieta abusiva e impositiva, que associa o sucesso à forma corporal de um indivíduo. Existe um valor moral atribuído não só às formas corporais, mas também à forma como nos alimentamos. Se comermos uma pêra no lanche da tarde: ̈Uau! Somos uma ótima pessoa! ̈. Se optarmos por uma coxinha no lanche da tarde, já não nos sentimos tão bem assim. Não porque não estamos satisfeitos com a nossa escolha, mas porque somos julgados por outros, e até por uma voz interna nossa - a mentalidade da dieta - que nos pune a cada "má escolha" que fazemos.
Eu quero mudar meu corpo e não acho mais que isso seja contrário a amar e respeitar quem eu sou agora. Porque eu não quero mais fazer isso para ser feliz. Eu já sou feliz. Quero mudar esse corpo para que ele comporte cada vez melhor a vida que eu quero e posso ter.
Eu não vou emagrecer para correr, nem correr para emagrecer. Eu vou correr porque… eu quero correr. Mais longe. Mais rápido. Mais fácil. Com mais frequência. Até 10km. Depois 21km e aí 42km. Até eu inventar a próxima coisa. Por enquanto, só o que eu sei é que vai ser com esse corpo aqui.
Até a próxima!
Belo relato! Fico feliz por você ser feliz. E também por ver uma foto de Florianópolis aqui no Substack, rs.
Sem muitos caracteres hoje, apenas: a foto da corrida no final <3